Era uma questão de quando o incêndio ia acontecer, critica Walter Neves

Hora do Povo

04/09/2018

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O acervo de mais de 20 milhões de itens do Museu Nacional era considerado um dos mais importantes do mundo e era composto por importantes peças de todo o mundo, além das maiores coleções egípcias e indígenas da América Latina. Dentre o material destruído está “Luzia” – o mais antigo esqueleto humano encontrado na América Latina, com mais de 11 mil anos.

Para o antropólogo Walter Neves, o “pai de Luzia”, o incêndio é fruto de “um descaso público de décadas”.

“Estou absolutamente estarrecido com a notícia que o Museu Nacional do Rio de Janeiro está sendo devorado pelo fogo. Infelizmente isso não era uma questão de se isso ia acontecer, mas quando isso ia acontecer”, criticou Walter Neves, em vídeo publicado no Facebook, momentos após o início do incêndio.

“O museu vem sofrendo um descaso público de décadas. Certamente o Museu Nacional tem as coleções museológicas mais importantes do país, entre eles, para minha maior tristeza, o crânio da Luzia, o esqueleto humano mais antigo da América”, lamentou o pesquisador.

TRAGÉDIA

Em entrevista ao “Estadão”, o antropólogo classificou o incêndio de uma “tragédia para a Humanidade. “E nós teremos de prestar contas disso para a Humanidade. Será sempre uma mancha enorme para o Brasil no mundo inteiro”.

O pesquisador destacou a importância das ossadas que foram consumidas pelas chamas. “Estudar Luzia revelou sua importância para o povoamento das Américas e também que não houve apenas uma onda migratória, mas duas”, afirmou Neves. “Em termos de primeiros americanos, essa é a coleção mais antiga, são mais de 200 esqueletos, todos de Lagoa Santa. Vendo pela TV é complicado saber, mas acho remota a possibilidade de esse material ter sobrevivido.”

“Para mim, a maior tragédia, de longe, é a perda das coleções”, diz Neves. “Em muitos países, por incrível que pareça, até na Etiópia, coleções únicas, como por exemplo a Luzia, são consideradas questão de Estado: isso quer dizer que elas são mantidas em situação ideal de preservação e, para estudá-la, é preciso pedir permissão diretamente ao presidente da República.”

“A questão das coleções é muito cruel, porque ou você tem ou não vai ter nunca mais”, disse Neves, se referindo especificamente às coleções egípcias e gregas, as maiores da América Latina, trazidas em parte por Dom João VI, em 1808, e adquiridas posteriormente por Dom Pedro II. “Esse é um material que nunca mais vamos ter, mesmo que a gente vá escavar nesses países, as leis nacionais não permitem que as peças saiam. Então, nesse caso, nunca mais é para sempre, nunca mais vamos ter condições de fazer pesquisas sobre Egito e Grécia com base em coleções de museus no Brasil.”

Walter Neves é coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Neves não foi o responsável pelo resgate do esqueleto, na década de 70, na região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte. Mas graças a seus estudos foi possível reformular a teoria de ocupação humana nas Américas durante a pré-história. Segundo Neves, pelo menos outros 200 esqueletos do extinto povo de caçadores-coletores, ao qual pertenceu Luzia, também estavam na reserva técnica do museu e provavelmente também se perderam. Os fósseis são datados de 8 mil a 10 mil anos.

O modelo dos dois componentes biológicos postulado por Neves sustenta que o continente americano foi colonizado por duas levas distintas de Homo sapiens, vindas da Ásia. A primeira onda migratória teria ocorrido há pelo menos 14 mil anos e era composta de indivíduos parecidos com Luzia, com traços semelhantes aos dos atuais negros africanos e aborígines australianos. Este grupo, no entanto, não teria deixado descendentes. Uma segunda leva migratória teria chegado há 12 mil anos e seus membros apresentavam um tipo físico característico dos asiáticos, dos quais são descendentes os índios atuais.

Foi Neves quem batizou o fóssil de Luzia – numa alusão a Lucy, um fóssil de australopitecos de 3,2 milhões de anos descoberto no Deserto de Afar, na Etiópia, e que é considerado um dos mais antigos hominídeos de que se tem notícia. Ele se encontra hoje no Museu Nacional, em Adis Abeba. O fóssil, no entanto, é guardado em condições de segurança e apenas uma réplica fica em exposição.

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